AUTORAL: Conto de pós-Natal
Ensaio supra-realista de uma fantasia natalina
TEXTO: Marcos Ivan de Carvalho.
Na pracinha de São Benedito, descalço e com as botas de cabeça para baixo num dos galhos de árvore, Papai Noel dobrava o casacão vermelho e as calças enormes. Estava, na realidade, se desembalando das fantasias para enveredar mais um bom tempo pelas ruelas da realidade.
Descuidado, não percebeu um caramelo roubar-lhe as barbas postiças. Mesmo porque estava sem os óculos de grau, ainda guardados naquela irrepreensível sacolinha de TNT ofertada, graciosamente, pela Ótica da Cidade.
Deu uma golada na garrafa pet de Dolly, incansável concorrente da Coca-Cola, passou a cordinha de sisal por entre os passadores da surrada calça jeans, fazendo um nó tipo “marinheiro só”, ajeitou os negros cabelos crespos, deu um trato na camiseta do timão, aquela mesma do campeonato passado.
Guardou o uniforme de entregador de sonhos na mesma sacola onde muitos sonhos chegaram, outros tantos passaram longe dela.
Atravessou a pracinha, deu bom dia para a mocinha “espanhola” do trailer de café parou ao lado do banco do ponto de ônibus. Ia pegar o bonde até lá para as bandas do Spani. Era preciso fazer a compra das coisas de tentar fazer um almoço de Ano Novo ao lado do amor de sua vida, a verdadeira mamãe de seus 5 filhos.
A mulher e cinco filhos ficaram, o tempo todo, em casa. Enquanto Noel fazia de conta que a Mamãe Noel era parte da família. Na verdade, nem tinha perguntado à atriz qual era o nome dela. Foram, durante bons dias, e noites até as 22 horas, Papai e Mamãe Noel.
Com os trocos pagos pelo seu serviço poderia tentar um panetone maior, um “champanhe de cidra”, uma massa pronta para bolo de chocolate, uns refigerantezinhos caçulinha, um frango para assar na churrasqueira de roda de carro, um pouquinho de linguiça tipo calabresa (a verdadeira é mais cara), uma lata de “marrão gracê” e um queijo minas, para a sobremesa.
Arroz e feijão ainda tinha uns tantos lá.
Só isso? Só, pois na virada do ano já tinha que pagar o aumento do aluguel, a água, a luz, o gás e, de quebra, uma botinha nova para o mais velho poder sair todos os dias catando latinhas para ajudar nos gastos da casa.
O busão chegou, Zeferino deu com a mão, passou o cartão magnético, (nossa, ainda tem esse cartão para recarregar!), tomou assento lá no fundo e foi cantarolando aquela musiquinha do “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”...
Tentaria melhor sorte no outro final de ano, já que a vaga de segurança não tinha sobrado para ele por não ter feito o “cursinho” exigido e, também, não ter roupas pretas para o uniforme.
O ônibus esperou o farol abrir e lá se foi “Noelferino” sonhando acordado com a felicidade da criançada ao ver as garrafinhas de refrigerante.
Na verdade, ele havia “ganhado” de um lojista uma bonequinha “Barbie genérica”, um caminhãozinho de bombeiro, um cubo mágico, uma pelúcia do Stitch (também genérica), para os filhos menores. O mais velho já ia ganhar as botinas.
Para a “dona do seu coração” estava levando um celular reformado, comprado do chinês ali dos lados do Largo do Cruzeiro.
Se fosse, realmente um pouco mais gordo, tentaria um trampo como Rei Momo, já que não teria tempo para o cursinho de segurança.
Desistiu de pensar quando um sopro tipo “fala do Saci Pererê” passou pelos seus ouvidos.
Consolou-se ao perceber que ainda tinha saúde e muita fé em Deus.
Disfarçou a gotinha de lágrima malandra a descer pela face esquerda, puxou o cordão de sinal, a porta se abriu e ele se despejou do circular.
E continuava pensando que todo mundo era filho de Papai Noel e com a certeza de todos serem, realmente, filhos do Papai do Céu.









